Alegria,Usulutan e Zacatecoluca
7 de dezembro de 2014 –
Resolvemos pegar um ônibus para voltar a São Miguel, já que 4 dias atrás tínhamos feito de bicicleta este mesmo caminho. Eram 30 e poucos quilômetros, assim que com nossa “boleia” em menos de 1 hora estaríamos de volta a São Miguel, onde nos encontraríamos com José Inés e sua família (que nos recebeu em San José de Gualoso uns dias atrás).
Mas antes de embarcar no ônibus, o motorista não estava querendo colaborar. Disse que as duas bicicletas não entravam no bagageiro e teríamos que ir em carros diferentes. Concordamos, eu embarquei e meia hora depois saia o outro ônibus com Quique rumando nosso destino.
Desço no posto de gasolina combinado e fico esperando, o tempo previsto passa e começo a me preocupar pois o ônibus do Quique não chegava e não teria como nos comunicar. 40 minutos após minha chegada, aparece um rapaz mexendo no celular. Sem dúvidas peço para usar a Internet dele e me comunico com o Quique…tinha acontecido o que eu estava imaginando: o cobrador esqueceu de avisar onde tinha que descer e já estava a umas boas quadras adiante.
Alguns minutos se pasaram até que com o bagageiro na mão, chega o Quique. E pela segunda vez que colocamos as bicis em ônibus, a segunda vez que tivemos problemas: desta vez o estrago foi grande. Ao puxar a bici, o funcionário do ônibus quebrou o bagageiro ao meio! Somando mais um imprevisto na nossa conta.
Menos mal que junto comigo no posto de gasolina já estava José Ines e família em sua camionete. Aproveitamos e fomos com eles até a cidade de Alegria.
Estas coisas acontecem muito com quem usa os sites como Couchsurfing e warmshowers: viviam perto de Alegria e não conheciam, mas quando recebem “surfers” saem para desfrutar destes lugares também.
Alegria é uma pequena cidade de montanha na região de Usulután, cercada de cerros, vulcões e fazendas de café. Desde o século XIX, o principal patrimônio econômico da cidade é o cultivo do café.
O caminho é sempre de subida, e as paisagens espetaculares!
Mas a grande atração da região é a Laguna de Alegria, situada a dois quilômetros da cidade por uma estrada bem empinada de pedra em bom estado. A entrada é apenas 0,25 de dólar.
Além da placa de “bem-vindos” uma cena bem comum da região: mulheres levando seus pertences na cabeça.
Entre as folhas deu para ver um lago também verde e um cheiro de enxofre nos envolveu…
Um cenário inesperado. Tínhamos entrado em um cone gigante, estávamos dentro de um vulcão extinto. Na cratera, estava a laguna, nós, uma escola e uma quadra de futebol.
Esta cratera do vulcão Tecapa foi batizada pela escritora chilena Gabriela Mistral como “La esmeralda de América”, impressionada pela cor verde das suas águas cristalinas.
E realmente é de impressionar essas águas saturadas de enxofre, nas quais dizem ser excelentes para as doenças da pele.
Passamos toda tarde com a família García, entre almoços, risadas e muitas histórias!
Como estávamos com o bagageiro quebrado e não conseguimos conserto na cidade, seguimos com eles de camionete até alguma cidade maior que ficasse no caminho deles para casa.
Antes de despedirmos de Alegria, percorremos rapidamente as ruas de paralelepípedos para admirar a arte de rua e murais que colorem a cidade .
E o caminho escolhido de regresso foi passando pela cidade de Berlim. Uma pacata cidadezinha que nos chamou atenção um quadrinho em um estabelecimento com buracos de balas que ficaram ali expostos após um conflito armado nessa zona. Hoje em dia é um hostel, onde seus donos preservam vários objetos e o ambiente que foi afetado no local, tornando-se também um vestígio histórico valioso.
Estávamos um pouco perdidos para achar a estrada de volta, José Inés pergunta a uma senhora onde era o caminho pela estrada velha de Usulutan que passaria por San Agustin, me preocupo um pouco com a resposta dela: Melhor vocês fazerem a volta por outro caminho, esta estrada é vazia e seguidamente tem assaltos!
Ninguém deu muita bola para os conselhos da moradora e seguimos adiante em uma estrada de terra e cheia de buracos que não sei como Charlie (filho de José) conseguiu dormir.
Depois de umas 2 horas chacoalhando na caçamba e um pouco apreensiva (pelo menos eu), chegamos na cidade de Usulutan, onde nos despedimos de José e de sua amável família e fomos em busca de um alojamento na cidade, mais uma vez os bombeiros foram nossa opção.
Chegando a estação de bombeiros nos surpreendemos com a instalação do lugar: um pátio enorme, com direito a rede e a uma piscina.
Apesar do “look” do banheiro, não dava para pular o banho depois de um dia tão quente de pedalada…
À noite, buscando um lugarzinho para comer encontramos uma feira de quiosques de comida de rua logo na rua ao lado de onde estávamos. Torta mexicana, este foi nosso lanche dos dois dias passados na cidade, pelo preço principalmente ( e mal sabíamos que no México seria ainda mais gostosa!). Que nada mais é que um sanduiche com muuuitas coisas dentro, mas nunca faltando o abacate!
Enquanto lanchávamos, um senhor que estava por perto nos olhava e dava sinais de curiosidade e de querer convesar. Fizemos algum comentário qualquer e assim começou o papo. Seu nome é Guillermo, tem 48 anos e a pouco tempo voltou a morar alí. Viveu 16 anos nos Estados Unidos, mas estava cansado da vida de lá, tinha saudade da de cá.
Assim como a maioria dos imigrantes, Guillermo foi “molhado” (ilegal) para lá (dizem “molhado” pelo fato de terem que atravessar rios para chegar nos EEUU). Na época pagou uns 3.500 dólares ao “coyote” ou “poyero”, mais hoje em día anda pelos 8.000! As pessoas tiram empréstimos e até hipotecam suas casas para conseguir o dinheiro.
A travessia é dura, dizia. Numa lancha iam 25 pessoas, apertadas, sem as menores medidas de segurança, 24 horas no mar para passar da Guatemala ao México (onde começa a barreira já que pedem visto para os países Centroamericanos). Logo, foram 4 dias caminhando à noite no deserto. “Viam-se algumas roupas, sapatos perdidos, enfim, rastros daqueles que nunca chegaram” comentou algo emocionado.
No outro dia de manhã nossa missão era encontrar um lugar para consertar o bagageiro para seguir adiante. E já sabíamos que não ia ser tão fácil assim, fomos em várias oficinas de bicicleta, mas nenhuma que soldava alumínio.
Na quarta tentativa encontramos uma oficina que pela rotatividade de pessoas, deveria ser um bom lugar! E não estávamos enganados, além do atendimento nota mil conseguiram solucionar todos problemas que as bicis tinham, até alguns que nem sabíamos que existiam!
Soldaram o bagageiro da bicicleta do Quique (e o meu também, já que disseram que logo iria quebrar), arrumaram os pezinhos da bici, conseguiram mais parafusos e lubrificantes e ainda por cima nos deram uma carona até um restaurante próxima enquanto eles faziam o serviço.
Depois de tanto trabalho da parte deles, já estávamos imaginando que no mínimo tudo isso ia nos custar uns 30 dólares (arruinando nosso pressuposto de quase dois dias!), já que só o lubrificante tinha uma etiqueta de 10 dólares. E não podíamos acreditar: quando fomos pagar o funcionário disse que eram 10 dólares por tudo, nós insistindo que só o óleo era esse valor. Não teve jeito e sua justificativa foi: vocês terão muitos gastos por aí nessa viagem! Incrível.
São eses pequenos grandes gestos que vão ficando tatuados na gente…
Tivemos que ficar mais uma noite nos bombeiros, já que ficamos o dia inteiro na função de arrumar as bicicletas e chegaríamos tarde ao próximo destino.
Passamos um tempo conversando com o guardião do turno, cargo destinado ao bombeiro que já está quase se aposentando, assim é um serviço mais leve pois atende às ligações e na organização do quartel. Contava que no auge dos seus anos, sempre era o líder nas Olimpíadas dos Bombeiros realizada em todo país, e que o Corpo de Bombeiros de Usulutan sempre ia muito bem, inclusive disputavam jogos com outros países na América Central. Tudo relacionado com eles, com modalidades com mangueiras, fogo e escadas. Depois nos inteiramos que existe até uma Olímpiada Mundial que reúne bombeiros de muitos países.
Dia seguinte estávamos na estrada novamente, com nossas bicicletas recauchutadas e prontas para os muitos quilômetros que viriam pela frente. Mas neste dia, não muitos, apenas 54 km até a cidade de Zacatecoluca (trava língua total, eu sei).
Muitas vezes tínhamos que fazer alguns desvios nas estradas já que moradores que vivem perto do asfalto utilizam o acostamento para secar grãos, neste caso era o milho, mas vimos já grãos de café e feijão .
Outras imagens, um pouco menos esperadas da rota.
Na metade do caminho passamos por uma ponte sobre o rio Lempa, zona que se converteu em campo de batalha durante a guerra civil de El Salvador.
Na verdade a ponte na qual passamos foi construída anos atrás, já que a antiga, a ponte de “Ouro” foi destruída estrategicamente durante a guerra em 1981. Se chamava de Ouro pelo dinheiro que custou em sua construção. Também foi destruída outra ponte, a de Cuscatlán em 1984 também sobre o rio Lempa.
Na época, foi a maior ponte de suspensão da América Central.
Com a destruição da ponte, o país ficou dividido em duas partes, a área oriental onde o partido FMLN (Farabundo Martí para la Libercación Nacional) controlava a situação e a área ocidental (que pertencia a capital, El Salvador) comandada pelo Exército governamental.
Segundo os moradores da época, a ponte era usada para se desfazer de corpos dos opositores do Exército do governo, já que a correnteza levava rio abaixo os cadáveres em direção ao Oceano Pacífico, passando pelos manguezais de La Pita.
Seguindo adiante chegamos a cidade de Zacatecoluca, e como de costume nos direcionamos até a praça central da cidade, primeiro para descansar e depois para se informar de lugares que poderíamos passar a noite.
Depois de muita discussão de onde dormir (Quique estava cansado e não queria fazer a social, queria um hotelzinho barato, já eu queria economizar e queria ir aos bombeiros da cidade) ficamos com a minha opção e nos dirigimos até aos bombeiros que nos receberam amavelmente e deixaram disponível um pátio para nossa barraca que tinha até vista para o vulcão San Vicente.
Como chegamos cedo da tarde, ainda tivemos tempo de conhecer um lugar da cidade muito frequentado por locais: o balneário Ichanmichen. Um lugar lindo com piscinas naturais de águas cristalinas cheia de peixes.
Rodeado por árvores, este espaço conta com vários hectares de pura natureza, onde os visitantes aproveitam para fazer piqueniques, caminhadas, e é claro, se refrescar nas águas geladas do balneário.
Voltando para o nosso alojamento, nos demos conta que o lugar não era muito receptivo ao seu redor: muita sucata, pouca gente caminhando nas ruas e o pior, depois soubemos que muitas vezes acontecem toque de recolher ao anoitecer.
Ao retornar, conversamos com um dos bombeiros que estava de plantão e ele nos explicava que a situação da cidade não era a das mais tranquilas. Justo onde estávamos era bem onde dividia duas “clicas ” o facções da mesma “mara” 18 (gangue).
Um bombeiro nos contou que nestes bairros são os “mareros” que mandam. Eles controlam quem entre e quem sai. Toda pessoa que vai numa colônia onde eles estão tem que se identificar, dizer de onde vem e também dizer os nomes e sobrenomes dos “mareros” de seu lugar para poder entrar, e é melhor saber. Outra forma é fazer determinados sinais ao entrar no bairro, assim quem não faz, eles já sabem que é policia.
Atuam com muita violência entre eles e às vezes algum que não estava envolvido diretamente também leva a pior. Mas o corpo de bombeiros eles respeitavam, nunca tinham tido problemas, e na medida do possível tentavam conviver em harmonia com esse clima tão apreensivo dali.
Por último, nos contou da “flor do izote” a flor nacional do El Salvador, e como é comida em diferentes maneiras, fazendo deliciosos pratos.
No outro dia cedo seguimos nosso rumo, foram dias intensos, muito calor, apreensões e aprendizados.
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