27 de novembro de 2014 –

O sol estava começando a nos incomodar, já que muito cedo nunca conseguimos pegar a estrada, o jeito foi esperar o sol baixar um pouco e perto das 15h partimos rumo a La Union.

O caminho era tranquilo, uns 45 km sem muitas subidas, mas já estávamos em cima da hora, ou seja, o sol já estava querendo ir-se e já tínhamos escutado alguma não tão boa fama da cidade.

Chegando ao centro, como seria uma noite apenas na cidade fomos em busca dos bombeiros. Perguntamos e nos disseram que estavam no porto.

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Fomos bem recebidos pelos funcionários e pelo cachorro “Roco”, mas quem não estava para bons amigos era o vento.

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Uma ventania que estava complicado até ficar em pé! Como estávamos ao lado do Golfo de Fonseca (famoso por terremotos, ali se juntam duas placas tectônicas), vimos que vinha uma tempestade das grandes.

Com muita fome queríamos dar uma volta para buscar algo para comer e ver algo da cidade. Já era noite e perguntamos aos bombeiros como era a vizinhança e para nossa surpresa nos inteiramos que logo ao lado estava uma clica (facção) da “Mara Salvatrucha” (MS13), ou seja, um dos dois grandes grupos de “pandillas” (gangues), junto a “Barrio 18”. E que no último conflito entre eles, uns dias atrás, tinha morrido um na quadra de futebol logo ao outro lado dos bombeiros.

O surgimento das maras y pandillas juvenis centro-americanas tem relação como a violência política e também das crises econômicas dos anos 70 e 80 que provocaram uma migração massiva aos Estados Unidos onde muitos também foram excluídos. Eram crianças na maioria das vezes sem família, com pais assassinados e também ex guerrilheiros y paramilitares.  Em Los Angeles, por exemplo, áreas onde se estabeleceram imigrantes já estavam dominadas por pandillas juvenis, entre elas a “Pandilla 18” que tinha surgido nos 60´. Neste contexto surgiu a Mara Salvatrucha formada por imigrantes salvadorenhos e de outros países centro-americanos como forma de proteção contra as agressões da MS13.

Um documentário que retrata um pouco a vida de uma clica da pandilla Barrio 18 foi dirigido pelo espanhol Christian Poveda (assassinado a mando de um dos mareros do documentário pelo fato de um ex-policial ter inventado que ele era informante das autoridades ) e se chama La Vida Loca.

Em suas palavras comentou: “as maras são um exemplo universal para demostrar os efeitos que geram a marginação e as más políticas sociais” e vendeu a sua casa na Espanha para financiar seu projeto.

https://acercandomundos.com/cine-latino/

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Apesar disso saímos a caminhar (tínhamos que procurar comida) e logo vimos que realmente quando o sol se esconde as pessoas também. As lojas e armazéns já quase fechados,  além de um supermercado aberto encontramos uma banca de frutas com o que havia sobrado do dia: juntamos as sobras dos legumes para fazermos nossa janta, um guiso de arroz com vegetais.

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Neste lugar também conhecemos a fruta jícama, uma espécie de rabanete que comido com limão e sal fica uma delícia!

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Hora de dormir, mas pela forte tempestade que estava chegando e por precaução em caso que os vizinhos do lado (que somente estávamos separados por um muro baixo e pálido) resolvessem seguir a briga do outro dia, pedimos para dormir dentro do prédio.

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No outro dia de manhã vejo que alguns vegetais que guardava dentro de uma bolsa estavam com umas mordidas e vem Quique me dizendo que a noite tinha visto mesmo uns ratos passeando pela cozinha!!

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Foi ai que conhecemos a Deise, uma senhora que trabalha já anos nos bombeiros. É responsável pela limpeza e de cozinhar para todos. Logo quando me viu, senti que necessitava falar com uma mulher, afinal trabalha com uns 15 bombeiros e é mãe solteira de 3 guris. Perguntava-me várias coisas como que produto eu passava no cabelo, me ensinava a lavar a louça mais rápido, até que me perguntou porque eu não tinha filhos já com a minha idade (em média em El Salvador as mulheres tem filhos muito cedo). Aí logo surgiu o tema de que toda sua família vive nos Estados Unidos, e que queriam que ela enviasse os três guris para lá, pois segundo eles, teriam mais futuro e com chances de ter trabalhos melhores. Mas Deise emocionada me contava que por mais trabalho que passava para cria-los não arriscaria enviá-los sozinhos ilegalmente até lá (depois vimos que isso é muito comum: crianças sozinhas encaram meses de travessia até os Estados Unidos passando muito trabalho, e muitos às vezes acabam por desaparecidos ou mortos). Ou também a família que mora lá dizia que teria espaço para ela viver e inclusive com trabalho, mas Deise teme que caso vá, seus filhos sozinhos aqui se juntem com maras, no entanto embaixo de suas asas era mais garantido ter uma educação e estaria sempre alerta.

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Antes de sair, os bombeiros nos mostraram por quase meia hora mapas por qual caminho tínhamos que ir. Nossa ideia era pegar uma estrada secundária e passar por uma praia antes de chegar a Gualoso, nosso próximo destino. Foi aí que um dos bombeiros nos falou que essa estrada estava “caliente”, ou seja, perigosa pelas pandillas já que nos últimos tempos tem acontecido muitos assaltos por essa região. Aceitamos e agradecemos os conselhos, assim mudamos o rumo.

Despedimo-nos dos bombeiros e de Deise e demos uma volta pelo píer da cidade, lugar aonde chegavam alguns turistas de pequenos cruzeiros no Golfo Fonseca.

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Estávamos por seguir quando vimos um cartaz com uma promoção de “pupusas”, sabendo que tínhamos uns 50 quilômetros pela frente fizemos uma pausa e aí ficamos mais uma hora de conversa com nossos novos amigos de La Union. Antes de irmos um dos senhores (muito crente e sábio da Bíblia) nos quis pasar confiança ao nos dizer que “Deus protege aos estrangeiros, viúvas e órfãos”, “Zacarias 7:10” acrescentou.

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Com um calor fortíssimo seguimos rumo a San José de Gualoso, na verdade nunca tínhamos escutado esse nome e até mesmo nos mapas era difícil de encontrar, mas tínhamos um contato do Warmshowers que morava na beira de estrada mesmo, seria um bom local de descanso.

Mas antes mesmo de chegar neste povoado, paramos num trevo na entrada da praia El Tamarindo e Jaguey para fugir um pouco do sol e tomar algo. Nisso se aproxima um homem dizendo a Quique: dá-me esta bicicleta! E ele na hora: só se tu fores até o México com ela. Riram-se e começaram a conversar, eu bem distraída com meu suco de tamarindo não prestava atenção no que estavam dizendo e do nada Quique me diz para seguirmos, eu disse que estava terminando o suco, dois minutos depois repete para irmos com uma cara meio estranha.

Seguimos na estrada e após alguns minutos me conta a conversa…

Era um jovem que viveu 10 anos nos Estados Unidos e fazia pouco que tinha sido deportado. Sua mirada era forte, suas palavras amáveis. Tinha uns 30 anos aproximadamente e a primeira vez que cruzou a fronteira foi sozinho com apenas 14 anos. Dessa vez se salvou por pouco que o “coyote” (o cara que serve de guia) o matara. Logo foi deportado e se foi de novo, passou uns três anos y faz pouco que regressou, deportado obviamente. Enquanto me falava vi nos seus antebraços umas tatuagens típicas dos mareros. Continuei a falar normalmente até que nos despedimos com um aperto de mão e um desejo de sorte em nossas viagens.

Depois deste susto, aceleramos bastante e antes do que esperávamos já estávamos em San José de Gualoso onde José Inés, Mari, Charlie, Xochilth e seus dois sobrinhos nos esperávamos com muita história para contar.

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José e alguns dos seus irmãos durante a Guerra Civil Salvadorenha (1980-1992) resolveram fazer o que muitos fizeram nesta época, seguir rumo ao norte, neste caso para o Canadá. País que recebia muitos imigrantes de países que estivessem em conflitos internos. E a maneira era pagar um coiote e ir cruzando de fronteira em fronteira até chegar ao destino.  O ano era 1985, ele tinha uns 11 anos e conta que quando estava cruzando perto da Cidade do México sentiu um cheiro muito forte a podre. Tratava-se de um dos terremotos mais fortes da história da América Latina no século passado, que uns dias antes de José ter passado por ali tinha deixado a capital destruída, com milhares de mortos. Contava bem emocionado sendo uma das coisas que mais marcou este trajeto.

Mas depois de quase 30 anos vivendo por lá sentiu que por mais que tivesse uma vida estável e realizada, faltava compreender algumas coisas de seu país natal e regressou de bicicleta, sozinho até El Salvador, onde parece realizado e cheio de sonhos.

Na primeira hora veio curiosa conhecer os novos hóspedes da casa, Xochilth, filha de José de apenas 4 anos e muito esperta. Logo depois aparece Charlie, seu irmão de 9 anos mais reservado mas que de pouquinho foi se soltando e nos contando suas sabedorias sobre astronomia e Bob Esponja.

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A bola sempre é um fator fabuloso de integração (independente da idade)

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São a alegria do lar, muito independentes e acostumados a todo tempo ter ciclistas em suas casas, afinal desde muito tempo recebem viajantes em bicicleta. Como sua residência é na beira da estrada e pelo trabalho também anda muito pela estrada, frequentemente José via ciclistas sofrendo nas subidas que rodeiam a região e aproveitava para recebê-los em sua casa. E foi assim que acabou conhecendo o site warmshowers onde a gente encontrou-o.

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Entre as histórias que nos contou, lembramos as de um casal que tocava guitarra e fazia malabares que quando juntavam mais de 50 dólares na semana (que era seu pressuposto) doavam o dinheiro que sobrava para escolas ou gente que precisava mais que eles. Outra foi a de uma família francesa que viajou de Alasca a Patagônia, todos de bicicleta, incluindo crianças pequenas! Levaram 5 anos.

Justo nestes dias José estava bem ocupado com suas atividades, tanto do trabalho em suas duas lojas como da construção da sua nova casa. Assim que pegávamos as nossas bicicletas e saiamos para recorrer lugares na volta, um dia nosso destino foi a praia El Cuco que fica há uns 15 quilômetros de Gualoso.

Era um sábado e a praia um pouco tranquila, extensa e um quiosque a beira mar nos chamava para passar a tarde por ali. Aproveitamos para comer um peixe e tajadas (banana frita em tiras), sempre acompanhado com tortillas de milho.

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Nas redes de balanço ficamos umas horas, até que nos animamos a entrar ao mar, no caso, literalmente: Pacífico. Um mar tranquilo nos esperava e logo vejo que eu era única usando  biquíni, fiquei um pouco constrangida, afinal estavam todos, homens, mulheres e crianças com shorts e camisetas se deliciando nas pequenas ondas.

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Volto do meu banho e pergunto para senhora que trabalhava no quiosque se as mulheres não usavam maiô ou biquíni quando vão a praia, ela riu alto e respondeu: Boa pergunta “mija” !! Aqui nós salvadorenhos, em especial nesta praia, não usamos estes trajes acredito que pelo sol forte ou pela falta de opções de compra de roupas para praia… Hummm me deste uma boa ideia para ganhar uns trocos, na próxima temporada estarei vendendo “roupas de praia”, acho que não terei muita concorrência, comenta ela.

O tempo passou rápido e nem percebemos, o sol já estava baixando e lembramos que estávamos em bicicleta, ou seja, tínhamos cerca de 1 hora de pedalada até voltar a casa de José.

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Sem saber muito bem o caminho fomos, por lugares desertos, estreitos e alguns bem remotos nos quais éramos mirados com ar de curiosidade.

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A noite nos agarrou na estrada principal, era hora de colocar todas as forças nas pernas que faltava pouco, mas essa escuridade toda não nos deixava tranquilos. Finalmente de volta, José e sua família nos esperavam para irmos comer pupusas em uma cidadezinha ao lado, bom desfecho para este dia.

Amanheceu, e sabíamos que tínhamos que seguir, rumávamos a San Miguel. Deixamos combinado que dentro de uma semana voltaríamos nos ver, sem lugar exato ainda, e assim foi nossa despedida com ar de até logo.

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