15 de outubro de 2014 –

Conhecemos algumas pessoas durante a viagem que nos diziam que Manágua era uma cidade desnecessária para conhecer, que era uma capital sem vida e sem cultura. Infelizmente existe gente que pensa assim, mas eles não sabem o que perdem! Além de um lugar cheio de cultura e história (como todo lugar no mundo), encontramos pessoas incríveis nessa capital, aliás, bastante sofrida por tragédias climáticas, injustiças e guerras.

Chegando a Manágua fomos recepcionados por um toró de água que fazia tempo que não víamos. Ficamos empapados, e de tão quente o pior (ou melhor) é que em 20 minutos já estávamos secos.

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Logo encontramos com uma couchsurfing, que se chama Elizabeth, uma francesa que vive em Manágua junto com sua filha Helena e a gata Cleópatra.

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Na porta do nosso quarto tinha uma surpresa para Quique, um trabalho de colégio da Helena que havia que desenhar bandeiras de os países da Copa do Mundo de Futebol.

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Não queríamos entrar no centro da cidade de bicicleta (já que são mais de 1 milhão de habitantes vivendo ali), assim que no outro dia fomos de ônibus conhecer um pouco dessa histórica capital nicaraguense.

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Descendo do ônibus nos deparamos com uma avenida cheia de árvores amarelas de ferro. E logo descobrimos que tudo isso era um símbolo do governo do presidente Daniel Ortega. Cada “árvore da vida” (inspiradas na obra do artista austríaco Gustavo Klimt) teve um custo de 20 mil dólares cada, sendo 22 na cidade, essas estruturas metálicas somam 440 mil dólares! São aproximadamente 14 metros de altura e 6 metros de largura, contam com centenas de luzes amarelas, que ficam acesas no mínimo 4 horas por dia. E depois ainda nos contaram que para implantação deste projeto, muitas árvores reais foram destruídas para deixar espaço para estas outras.

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Nossa primeira parada foi justo na Praça da Revolução, um lugar histórico e marcante para toda população. Inaugurada pelo General José Santos Zelaya em 1899, esta praça aberta foi cenário de vários protestos, festas, romances e mudanças.

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Chegando à praça, um senhor vem nos oferecer água para comprar. Na verdade, não tínhamos sede, mas resolvemos ajudá-lo. E assim começou uma linda conversação. Seu nome é Pedro, 76 anos e a 20 vende água na Praça.

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Começou a nos mostrar cada lugarzinho deste histórico lugar: a tumba de Carlos Fonseca (comandante sandinista), o monumento em homenagem a Rubén Darío e do herói nacional Augusto C. Sandino.

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De um lado se vê o Palácio da Cultura (Museu Nacional e Biblioteca Pública), ao centro a Antiga Catedral de Manágua que demorou 10 anos para ser construída (1928 a 1938) e no lado esquerdo a Casa Presidencial ou Casa de los Pueblos que no momento somente é utilizada para receber delegações  estrangeiras. Alguém nos contou que o presidente Ortega não mora ali porque a sua mulher (uma figura muito particular e presente na vida dos nicaraguenses) disse que não estava de acordo com as normas do fengshui da Casa

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Uma das particularidades que nos contou Dom Pedro foi sobre o relógio da Antiga Catedral. Diz ele que os ponteiros pararam de funcionar no exato momento do terrível terremoto de 23 de dezembro de 1972 (que destruiu quase toda cidade), ás 12h35 da noite, e assim ficou até hoje.  Como os ponteiros, todo resto da catedral ficou em abandono desde então e isto causa mais dano que o próprio terremoto.

Dom Pedro tinha muito história para contar, vivia de suas vendas de água a 1 córdobas ( cerca de 0,05 centavos de dólar) e também com a ajuda de Deus que através  das pessoas lhe dão roupa, comida e passagem de ônibus cada vez que precisa.

Nascido perto de Matagalpa (região norte e alta do país), na cidade que hoje se conhece como Ciudad de Dario (em homenagem ao poeta Rubén Darío que também nasceu ali).Trabalhou muito tempo na colheita de algodão por esta região e logo após a crise do produto ficou sem trabalho e anos depois também sem aposentadoria, pois na época não contribuía. Este fato e outros lhe deixam cada vez mais desconforme com o governo atual.

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Era hora de almoçar e Dom Pedro nos mostra um restaurante bem simples ali mesmo no quarteirão.  Comida boa, bonita e barata! Por 50 córdobas (mais ou menos 2 dólares) tínhamos um prato cheio e ainda acompanhava um suco de tamarindo com chia. Dom Pedro foi nosso convidado.

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Seguimos adiante, descemos duas quadras e já estávamos na beira do lago de Xolotlá, um lugar bem abandonado, mas que depois de guerras e terremotos está sendo remodelado para trazer mais vida para este espaço.

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Um exemplo disso é o Puerto Salvador Allende, um local cheio de restaurantes, bares e um calçadão a beira do lago para levar a família e passar o dia.

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E de repente, se tiver sorte também a natureza te dá um presente de fim de tarde!

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Já caindo a noite passamos rapidamente pelo Teatro Nacional Rubén Darío, um dos poucos edifícios que sobreviveram ao terrível terremoto de 1972, graças ao seu sistema antissísmico japonês. Aí vimos uma sala chamada Júlio Cortázar, como retribuição ao carinho deste franco-argentino pela capital nicaraguense, pela Revolução e sua população.

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No livro “Nicaragua, Tan violentamente Dulce”, Cortázar homenageia a cidade com este lindo poema :

Notícia para viajero :

Si todo es corazón y rienda suelta
y en las caras hay luz de mediodía,
si en una selva de armas juegan niños
y cada calle la ganó la vida,

no estás en Asunción ni en Buenos Aires,
no te has equivocado de aeropuerto,
no se llama Santiago el fin de etapa,
su nombre es otro que Montevideo.

Viento de libertad fue tu piloto
y brújula de pueblo te dio el norte,
cuántas manos tendidas esperándote,
cuántas mujeres, cuántos niños, cuántos hombres

al fin alzando juntos el futuro,
al fin transfigurados en sí mismos,
mientras la larga noche de la infamia
se pierde en el desprecio del olvido.

La viste desde el aire, ésta es Managua
de pie entre ruinas, bella en sus baldíos,
pobre como las armas combatientes,
rica como la sangre de sus hijos.

Ya ves, viajero, está su puerta abierta,
todo el país una inmensa casa.
No, no te equivocaste de aeropuerto:
entrá nomás, entrá nomás,
estás en Nicaragua.

Entrá nomás, entrá nomás,
Estás en Nicaragua.
para que luche el hombre
de país en país, por la Paz.

Voltando a casa da Elizabeth, preparamos umas pizzas caseiras e nisso conhecemos algumas boas histórias desta francesa que trabalha na área administrativa financeira em empresas terceirizadas da ONU. Viveu em vários lugares na América, Europa e África.

Por exemplo, uma simples atividade como de pagamento de contas em países como Angola lá por 1996 onde a moeda kwansa tinha uma desvalorização alta por dia se tornava uma aventura. Contou-nos que esperava o último dia do mês para  pagar a luz (e ganhava mais de 500 dólares  por causa da desvalorização quando trocava esse dia dólares por kwanza). Começava o dia chamando o motorista para dar uma volta (nunca podia dizer que iam no banco, por segurança), logo saiam a algum local qualquer e pedia para passar no banco deixar uns papéis. Vestia-se bem informal e levava uma mochila velha cheia de dólares. Logo trocava a moeda local, e se tornava bilionária com 3 maletas de kwanza.

No local de pagamento da luz entregava as maletas e a contagem era manual, bilhete por bilhete. Às vezes podia durar uma hora, sempre e quando não  houvessem erros na contagem, nesse caso, voltava-se ao princípio novamente. E se não dava tempo de contar tudo até a hora de fechar o local, o pago não era aceito e com uma eficiência assustadora cortavam a luz imediatamente! (mas para reativar o serviço, os tempos eram outros, naturalmente).

Não satisfeitos em conhecer somente uma parte do centro histórico voltamos outro dia para explorar a Biblioteca Nacional, e no caminho nos deparamos com um lugar bem especial no centro de uma avenida movimentada. Era o Arboretum Nacional Juan Bautista Salas, um modesto jardim com mais de 200 espécies de árvores entre elas a árvore nacional: o madroño. Cujas flores brancas servem de decoração e também de veneração a virgem Maria.

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Depois de muito procurar a Biblioteca Nacional, fomos nos dar conta que estava localizada dentro do Palácio da Cultura onde estivemos o dia anterior. Chegando ao segundo piso do bonito prédio vimos que tinha uma sala especial para o mais conhecido escritor e poeta nicaraguense: Rubén Darío.

Ali passamos toda tarde, fomos recebidos por um expert de sua história e suas obras, Guillermo Flores . O príncipe de las letras castellanas, como ficou conhecido o poeta e escritor, também foi um diplomático nicaraguense. Mesmo com uma infância muito pobre, Darío aos 3 anos já sabia ler e aos 10 anos já escrevia poesia, herdando a maneira autodidata de sua mãe.

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Além de temas sociais, suas poesias possuem o exotismo, mitologia e o erotismo característico de sua personalidade. O livro mais conhecido é o chamado Azul, no qual marcou um momento na literatura com uma nova visão de mundo.

Depois de uns 3 dias com Elizabeth, Helena e Cleópatra nos despedimos delas, mas não de Manágua.  Sentíamos que esta cidade ainda deveria ser muito mais explorada. Aí nos dirigimos a outro couchsurfing chamado Fernando, que vivia há uns quilômetros de onde estávamos.

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Fomos recebidos por Jorge, e logo depois por 3 cachorros.  Lembro que dissemos: quantos cachorros! E ele nos responde: vocês não viram todos ainda… tem mais 2 e uma gata!

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Logo chega Fernando e sua mãe Beatriz e já nos sentimos super à vontade com os três, com os cachorros e gata (Lana, Canela, Janet, Mostaza 2, Blake e Chanel). Formam uma linda e generosa família (junto com Lester que fomos conhecer dias depois também), tanto com a gente e também com os bichanos (cada um tem uma história bem linda de amor, amizade generosidade). Contam que do jeito que vão adotando os animais (muitas vezes maltratados vão aparecendo), dentro de uns meses sua casa virará um refugio de cachorros!

Foram muitas conversas interessantes que nos deixaram mais perto dos nicaraguenses! Conhecemos muito mais da culinária, filmes, música, hábitos e costumes.

Jorge um dia nos preparou um riquíssimo prato típico, o famoso “Indio Viejo”.

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Já Beatriz, como jornalista de formação nos contou tanta coisa importante sobre o país, que foram verdadeiras aulas e aprendizados. Faz parte de um grupo de admiradores da trova de Silvio Rodriguez, gosta muito de música e juntamente com ela fomos a um concerto do lendário músico nicaraguense Luís Enrique Mejia Godoy em um lugar chamado Ruta Maya.

No intervalo do show, Beatriz nos chama para conhecê-lo pessoalmente, já que é bem amiga do dono do restaurante, o simpático Donald.

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E assim foi um encontro rápido com Luis Enrique, e nos comentou o carinho que tem tanto pelo Brasil como por Uruguai.

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Em 1983, os irmãos Luis Enrique e Carlos Mejia Godoy participaram de um histórico festival de música latino-americana chamado Abril em Manágua. Ali conheceram e receberam na capital os artistas brasileiros Chico Buarque e Fagner e o uruguaio Daniel Viglietti, além de Mercedes Sosa, Silvio Rodriguez entre outros.

Também é conhecido como o “Concierto por la Paz en Centroamerica” por ser uma representação cultural de um movimento de solidariedade internacional contra as ditaduras, repressões e governos autoritários em toda América Latina.

Já fazia uns meses que não tomávamos chimarrão. Tínhamos a bomba e a cuia e faltava a erva, mas Beatriz nos disse que provavelmente em uma loja que vende produtos naturais perto do Mercado Oriental podíamos encontrar.

Aí fomos bem esperançosos, e Quique ao encontrar a erva-mate quase saltou de alegria! Mas este entusiasmo durou muito pouco, nunca iria imaginar o preço: 380 córdobas (16 dólares) 500g de erva-mate! E não é que ele ainda pensou em comprar!?  Pra vocês verem como um uruguaio fica quando não está com o seu quase insubstituível mate.

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Sem a erva-mate, chegamos ao Mercado Oriental de Manágua, ver se ali conseguiríamos encontrar erva ou simplesmente conhecer este gigante, pois afinal são mais 150 quadras de muito barulho, cores e aromas! Não é a toa que é conhecido como “el más grande, el más desordenado y el más anárquico de Centroamérica “.

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Trabalham aí cerca de 18 mil comerciantes divididos em vários setores : de carnes, das fruta, das roupas, das ervas,etc…

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Não encontramos o que estávamos buscando, mas conhecemos diversos produtos vendidos no Mercado, entre eles a enchilada nicaraguense. Tortilha de milho recheada com arroz e legumes, logo uns minutos de fritura e estava pronto nosso almoço por menos de 1 dólar.

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Depois de algumas horas de Mercado, parecia que estivéssemos saído de um campo de batalha. Nosso maior desejo era chegar à casa dos nossos anfitriões de uma vez e descansar.

A alguns quilômetros da casa de Beatriz em Ticuantepe está a Reserva Natural El Chocoyero, El brujo. Fomos de bicicleta, mas já fomos avisados que o caminho seria um pouco duro, no princípio a estrada estava pavimentada e nos últimos 7 quilômetros foi um verdadeiro “rali”. Aonde nem ônibus chega até aí e com um carro comum seria provável que se encaminharia a um mecânico depois.

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Entre plantações de abacaxis e pithayas , pássaros típicos (guardabarranco) e muitos buracos na estrada de chão, chegamos finalmente ao destino.

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Na verdade, “el chocoyo” é uma cocota  ou loro pequeno onde a Reserva é o local onde eles descansam . De 700 a 900 casais vivem nessa área, mas para vê-los tem que chegar bem cedinho (5h da manhã) quando eles partem ou bem de tardezinha quando eles regressam (5h30 da tarde).

O máximo que podíamos ver era o paredão onde eles descansam, cheio de buracos: esconderijo dos pequenos verdes.

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Além dos “chocoyos”, esta área de 84 hectares possui 154 espécies de plantas e árvores e 217 espécies de animais entre trilhas que variam de 1h até 2h30min. Entre estas espécies algumas cobras da região estavam expostas, e a que mais nos chamou a atenção foi a cascavel e seu  famoso chocalho (que por cada anel é um ano de vida).

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Já estava anoitecendo e não queríamos pegar este caminho de terra sem luz, assim que aceleramos o passo para chegar rápido à casa dos nossos anfitriões.

Depois de uma semana com Fernando, Beatriz e Jorge e mais de 10 dias em Manágua tínhamos que seguir adiante, as pernas já estavam sentindo falta de se exercitarem.

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