1 de janeiro de 2015 – (El Salvador)

Ubicación mapa: punto 61

Era o primeiro dia do ano, estávamos empolgados com mais um ciclo começando e nem reparamos no sol forte que desde manhã cedo já dava as caras.  Sabíamos que eram poucos quilômetros até a cidade de Concepción de Ataco, mas também sabíamos que era quase todo caminho de subida, afinal estávamos nos encaminhando para a Rota das flores (lugar conhecido por ter belas paisagens, clima fresco e muitas montanhas).

Já nos primeiros 5 km comecei a passar mal, minha pressão baixou e minhas pernas começaram a tremer. Desci da bicicleta e tentei ir levando-a com as mãos. Foi só achar uma sombrinha em uma árvore na beira da estrada para ver que não ia ter condições. O calor forte me nocauteou! Quique ainda relutou, mas tivemos que pegar uma carona e na segunda tentativa de dedo lá estava uma caminhonete com sua caçamba disponível para levar-nos.

No que levaríamos 2 ou 3 horas pedalando no sol das 13h , resultou em 20 minutos de um vento fresco na cara. Foi bem o que ouvimos algumas vezes na viagem: um bom ciclista sabe a hora na qual tem que render-se e pedir uma carona!

Já na cidade de Concepción de Ataco ficamos encantados com a tranquilidade da cidade e com as ruas coloridas e cheias de vida.

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Tínhamos um contado através do Couchsurfing que seria para o dia 2 ,ou seja, para o dia seguinte. Assim, resolvemos dar uma parada em um hostel para averiguar a disponibilidade e fomos “conquistados” pela atenção e interesse dos funcionários. Tratava-se do Hostel Los Portones juntamente com o café La Estancia.

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Com uma apresentação destas do café, fomos sendo mimados.

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O barista do local Julio nos contou a fama dos cafés desta região que são muitos conhecidos tanto no país como fora. Estes cafés de altitude são muitas vezes premiados por serem de qualidade e  chamados “gourmet“.  Graças ao árduo trabalho dos indígenas da região que desde séculos tem como sustento a colheita de café. Triste realidade que, hoje em dia, a maioria das terras são de fazendeiros com muita influência política e com muito dinheiro, resultando que para as mãos do indígenas sobram somente migalhas.

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Mais uma caminhada pela ruas de paralelepípedo e logo encontramos um restaurante simples onde algo um pouco estranho para nós, fez com que fôssemos “devagar ao pote” ou melhor, ao prato. Era a pacaya, uma espécie de espiga de uma palmeira.  Um pouco amarga no começo, mas depois nos convenceu e terminamos rapinho o prato.

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Pacayas-forrada

Fazia já um tempo que não íamos a lugares turísticos, assim que nossa sensação foi de não nos sentirmos tão “raros” afinal haviam vários estrangeiros pela cidade. Vimos que viajantes quase sempre “pulam” El Salvador e Honduras de seus destinos turísticos na América Central pela fama de ser perigoso e não ter muita infraestrutura para recebê-los, ou seja, o turismo do “all inclusive”. 

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Realmente os dados assustam para um pequeno país, mas a maioria das pessoas não se interessa em saber o porquê disso e entender melhor a situação da violência em El Salvador.

O que chama muito atenção na cidade são as cores em todas suas tonalidades invadindo as ruas deste lugar que respira ares coloniais.  Dezenas de muros e fachadas se encontram pintadas dando um toque singular para quem os observa.

Um grupo de muralistas vindo de Los Angeles (EUA) desenvolveu um projeto de pintura social dando uma nova imagem ao município. Esta associação se chama “ Sparc Murals”, que juntamente com os habitantes de Ataco fizeram mutirões durante semanas . Segundo eles, este projeto atualiza uma tradição maia, civilização que costumava pintar murais para expressar seus rituais, calendários e escrituras.

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Os temas dos murais são bem variados, predominando o conteúdo social. Há referências dos direitos das crianças, populações indígenas e igualdade de sexos. Mas não deixando de lado também as belezas naturais da paisagem salvadorenha como seus vulcões, cafezais, praias e cachoeiras.

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Entre tanto murais, colocamos os olhos mais atentamente a este. Foi feito tão real que parecia uma foto impressa na parede. Soubemos depois que se tratava de um retrato da senhora mais anciã  de Ataco, Doña Gabriela Juárez.

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No outro dia entramos em contato com nosso anfitrião Atílio (através do Couchsurfing) e fomos até a sua casa, ou melhor, jardim-casa! Quando chegamos ao portão um senhor alto, de barba branca que parecia ter saído do conto de Hemingway (O Velho e o Mar) nos esperava com um enorme sorriso e um “Podem chegar, é aqui mesmo!  Bem-vindos a Shangri-la”!

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Depois percebemos o porquê deste letreiro na entrada da cabana, referindo-se ao livro do inglês James Hilton descrevendo um paraíso situado nas montanhas, com panoramas lindos e onde o tempo parece deter-se em um ambiente feliz e com a convivência harmoniosa entre pessoas das mais diversas procedências!

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Num ambiente muito lindo e agradável fomos apresentados a sua companheira Lilian, que já no primeiro instante sentimos uma enorme empatia!

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Atílio é um salvadorenho que há poucos anos voltou para sua terra natal depois de 45 anos vivendo nos Estados Unidos.  Não tem como não admirar sua história de vida já que com muito orgulho ia nos contando de suas façanhas na juventude como jogador de basquete da seleção salvadorenha durante os anos de 64 a 67, de seu trabalho de motorista pelos Estados Unidos (pelo qual teve a oportunidade de conhecer muitos lugares), suas várias corridas de maratonas, sua não ida ao Vietnã porque se fez que não falava inglês, e até de suas dificuldades de saúde que agora lhe tiram um pouco de sua energia.

Outra paixão de Atílio é a astronomia. Estava empolgadíssimos nestes dias que ficamos com eles pois justo era lua cheia, e do seu refúgio no alto de umas escadas tinha a possibilidade de observar essa maravilha através de um telescópio instalado por ele para poder monitorar todos os eventos possíveis na via Láctea.

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Além da enorme lua que ali estava, nos chamou atenção várias bandeirinhas em algumas casas ao redor. Atílio indignado nos comentava o que estava acontecendo na cidade: a compra de votos. Eram bandeiras de um partido político (da elite), o qual deixava comidas, telhas novas e até promessas de emprego em troca dos moradores colocarem “espontaneamente” suas bandeiras partidárias no alto de suas casas.

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Lilian é a companheira de Atilio. Se interessa e sabe de muita coisa, desde filosofia a economia, literatura, bordado, etc etc. Se entrega por inteiro nas amizades, que igual ao amor, não tem meios termos, comenta. Enfim, ela vai deixando por onde passa a alegria e vontade de vida e um pouco disso tentamos recolher.

Também é uma cozinheira de mão-cheia e fez questão de nos ensinar como fazer pupusas. Eu preocupada que não ia conseguir achar no Brasil esta farinha de milho branca, gostei da ideia que se pode fazer também  com farinha de arroz.

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Só um dos ingredientes sim que não creio que seja possível de encontrar por aqui: o loroco. Uma florzinha comestível que é muito utilizada na culinária salvadorenha. ( perguntei um dia a uma salvadorenha que vive nos Estados Unidos o que ela sentia mais falta da sua terra, ela não titubeou e respondeu: o loroco!)

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Esta receita rendeu um espaço na seção de comidas aqui no site : https://acercandomundos.com/receitas/

Mais uma volta pela cidade até chegarmos ao Parque Central, lugar de encontro da população e visitantes.  E lá estava sua igreja Imaculada Concepción, seriamente danificada pelos terremotos de 2001, mas que desde 2003 já está restaurada.
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Comidas de rua em formato de sapos, com direito a olhos vermelhos!

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Já ao entardecer resolvemos subir até o mirante da Cruz, passando pela igreja do Calvário. Logo encontramos suas dezenas de degraus que nos levariam até o alto onde poderíamos ter uma vista da cidade lá do alto.

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Caminho estreito e sem sinalizações, e ao final de 20 minutos estávamos lá.

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No domingo de manhã, tínhamos planejado explorar a feira gastronômica de Juayuá (uma das cidades da Rota das flores além de Ataco e Apaneca.) Lilian nos acompanhou até a parada e, com música alta num ônibus colorido, fomos passar a tarde na cidadezinha vizinha.

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Passada rápida por Apaneca, com vista da igreja da cidade e as montanhas de cafezais!

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Depois de 30 minutos, desembarcamos pertinho da praça onde ao redor estava acontecendo a tradicional feira gastronômica da cidade. Todo domingo das 11h até as 17h dezenas de bancas se acomodam em algumas ruas que rodeiam a praça principal para receber centenas de visitantes, sendo em sua maioria salvadorenhos de outras cidades que vem para desfrutar de uma tarde entre família e amigos.

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Caminhamos um pouco observando as diferentes opções de comidas: carne de porco assada, ceviches, mandioca frita, riguas (parecido com as pamonhas brasileiras), elotes locos ( milho cozido com queijo ralado, maionese e catchup por cima) e uma infinidade de pratos.

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Creio que chegamos na hora mais tumultuada da feira, já que não encontramos lugar para sentar no meio das barraquinhas de comida. Nossa solução foi caminhar umas quadras mais adiante para ver se encontrávamos algo e o que nos surpreendeu foi que havia um mundo bem mais econômico, sem turistas e com “não tão luxuosos” restaurantes populares a poucos metros da feira.

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O cardápio não era variado, mas o melhor estava no preço: 2 dólares. Dividimos o prato com arroz, feijão salada e uma carne, acompanhado, é claro, de muita tortilla.

Detalhe, Juayua tem muitos cachorros de rua por todo lado, mas eles são exigentes e não aceitam tortillas (haha, quase como a gente, depois de quase um ano comendo diariamente este sagrado alimento maia.)

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Voltamos a feira para acompanhar música ao vivo e dar uma olhada no artesanato da região. Aí começamos a perceber a quantidade de influência guatemalteca no local, afinal estávamos a pouco quilômetros da fronteira. Falamos com alguns comerciantes que nos explicavam que como a economia salvadorenha era em dólar, era muito mais rentável para eles venderem seus produtos ali.

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Já pelo fim da tarde pegamos o ônibus de volta, pois no outro dia era a vez de seguirmos nosso caminho.  Um jantar de despedida foi por nossa conta com “hambúrguer” de aveia e legumes que foi nossa receita durante a viagem.

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E Atílio anda, entre as dores do corpo e o bom humor da alma, com a esperança nos que ainda não nasceram. Sabedor que “há mais tempo que vida” (expressão que por El Salvador conhecemos), aguarda o passo dela, com menos dores possíveis e com mais amores vivíveis junto a Lilian.

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Atilio, navegante de galaxias, ateu de deuses misteriosos e cosmonauta de mares.

Era hora das despedidas! Imensamente agradecidos com estes dias passados com Atílio e Lilian, um casal que gosta de compartilhar momentos e histórias, que nos abriu as portas do aconchegante lar das montanhas, assim como Shangri-la foi descrita.

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Já nas bicicletas novamente, tínhamos uns poucos quilômetros de subida para depois ter uma longa descida até encontrar a estrada litorânea salvadorenha. E aí sim estaríamos bem perto da fronteira com a Guatemala. Já embaixo, o ar fresco e  agradável da altura deu lugar para o calor que voltava a colar em nossos corpos.

Visualizando no mapa, vimos que havia uma cidadezinha antes da fronteira que se chamava Cara Sucia. Nossa ideia era buscar um lugarzinho para dormir por ali para no dia seguinte entrar no país vizinho.

Paramos em uma farmácia para pedir informações, e seguia nos surpreendendo o armamento dos vigilantes em plena luz do dia.

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Ali estava o vigilante Josué, que nos contou que para trabalhar de segurança é necessário ter uma licença. Também que somente são permitidas três armas para tal função: escopeta 12, revólver de tambor e a outra que não lembramos.

Por último, nos informou que por ali não tinha nada de pousadas, e aconselhou seguirmos um pouco mais, que no meio da estrada iríamos ver um motel que seria o melhor lugar para passar a noite.

E assim foi, pechinchamos o preço e a hora da saída. Custou mais que imaginávamos (20 dólares) mas pelo menos conseguimos descansar e nos preparar para o dia seguinte com outra imigração!

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